A morte da alegria do Povo.

30/05/2012 12:36

 

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Etnografia de um funeral

Nas vésperas de sua morte, Garrincha residia em uma casa alugada havia cinco anos pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na Rua dosEstampadores, situada na antiga vila operária da Companhia Progresso Industrial, a fábrica têxtil de Bangu.

O fato de tratar-se de uma vila operária têxtil passou despercebido pela imprensa, que noticiou fartamente os acontecimentos de certa forma bizarros que se seguiram à morte daquele ex-jogador de futebol. Como por acaso, esse bairro assemelha-se bastante ao lugar mesmo onde ele nasceu e viveu até os seus anos de glória esportiva: a vila operária de Pau Grande, pertencente à fábrica de tecidos América Fabril e situada em uma localidade rural nas cercanias da cidade do Rio de Janeiro. Na impossibilidade em que estava Garrincha de voltar a seu bairro natal, o subúrbio de Bangu apresentava provavelmente características familiares suficientes para se constituir em um refúgio durante os anos de declínio do ex-jogador. A morte acabaria por levá-lo de volta a Pau Grande. Este aparente acaso chama, de fato, a atenção para o peso decisivo exercido pelas relações incrustadas em configurações sociais - como certas vilas operárias - sobre toda a vida de Garrincha, como veremos no decorrer deste trabalho.

Do domingo, 16, à quarta-feira, 19 de janeiro de 1983, ele não parou de beber nos bares das vizinhanças. Tinha então 49 anos: eram decorridos 30 anos desde sua entrada no futebol profissional, 20 anos desde o auge de sua notoriedade e dez anos desde sua tardia aposentadoria oficial. Quando ele finalmente voltou para casa, já passando mal, sua esposa - a terceira - pediu a ajuda de um de seus amigos, o ex-secretário particular de sua segunda mulher, a cantora Elza Soares. Este foi o único indício da presença desta mulher nos momentos finais do jogador. Ela teve, contudo, enorme importância em sua carreira profissional, após 1962. A primeira esposa, Nair, a antiga operária e colega de fábrica de Garrincha, já era falecida, mas sua família esteve muito presente no desenrolar do enterro, como de resto todos os moradores de Pau Grande.

Foi chamada uma ambulância do posto de saúde de Bangu, como já havia acontecido algumas outras vezes. Um tranqüilizante foi aplicado, e ele foi levado para o sanatório Dr. Eiras, no bairro de Botafogo, onde já havia sido admitido três vezes anteriormente. Essa rotina médica parece ter definitivamente transformado o célebre campeão em um pobre bêbado anônimo: ao invés de trazer seu verdadeiro nome, Manuel Francisco dos Santos, a ficha preenchida no posto de saúde de Bangu e remetida ao sanatório traz o nome de Manuel da Silva, uma variante próxima do anônimo "José da Silva". Esse erro revelador corrobora a sua própria tendência à autodestruição. Ele estava realmente no ponto reais baixo da queda que se seguiu às Copas do Mundo de 1958 e 1962, nas quais se consagrou como o maior jogador brasileiro, junto com Pelé. E assim, como um vulgar Manuel da Silva, que é admitido no hospital, às 20 horas, em coma alcoólico. Ele não recebeu nenhum tratamento médico particular, sendo descoberto morto às seis horas da manhã.

Assim que foi noticiado o seu falecimento, as crianças do bairro, que estavam em suas férias de verão, começaram a circular em torno da capela do hospital, junto com os empregados e as enfermeiras. Às 10 horas da manhã, o corpo foi transferido para o Instituto Médico Legal, para a autópsia. A imprensa assinalou então a presença de sua última mulher, que já era viúva de um jogador pouco conhecido e vivia com Garrincha há seis anos; de Agnaldo Timóteo, o popular cantor de boleros, eleito deputado federal dois meses antes, muito ligado ao clube Botafogo; de um dirigente da CBF; do produtor do filme Garrincha, Alegria do Povo; de dois ex-jogadores famosos. Um deles, Ademir Menezes - centroavante da seleção nacional de 1950 e dirigente da Associação de Atletas Profissionais -, propôs que o enterro fosse realizado no novo cemitério elegante, o Jardim da Saudade, onde Garrincha inauguraria o mausoléu da Associação. Por outro lado, Nilton Santos - lateral-esquerdo da seleção nas Copas de 1954, 1958 e 1962, antigo companheiro de time de Garrincha no Botafogo e na seleção, seu compadre(1), além de ser, mais que tudo, seu "padrinho" no futebol profissional - insistia para que o morto fosse sepultado no cemitério de Pau Grande, de acordo com seus últimos desejos. Sua autoridade de companheiro e protetor de Garrincha acabou decidindo a questão.

 
 

 

Perto do meio-dia, o corpo foi transferido para o estádio do Maracanã em um caixão luxuoso, que não se sabe se foi pego pele CBF ou pelo deputado Timóteo. O veículo, um caminhão do corpo de Bombeiros, teve muito trabalho parra atravessar a multidão comprimida na frente do imóvel do IML, precisando parar por alguns minutos, sob aplausos. A decisão de velar o corpo no Maracanã não parece ter sido objeto de contestação, como acontecera em relação ao local do sepultamento. Havia consenso em torno da necessidade de reabilitar Garrincha, de desfazer simbolicamente a injustiça de um destino tão trágico, celebrando assim certas tradições e certos interesses que pertencem ao mundo do futebol, ainda que os últimos sejam divididos muito desigualmente elos diversos atores da cerimônia. Dirigentes de clubes (os cartolas), antigos jogadores e torcedores de diversos times estiveram presentes no velório, ocasião em que as rivalidades esportivas deram lugar a uma homenagem consensual (como foi visto em 1989 na ínglaterra, após o drama de Sheffield). O publico fazia fila para reverenciar o copo.

Contudo, dois incidentes aconteceram naquele dia. O primeiro deles opôs a família de Garrincha à sua terceira mulher, acusada de ter parte de responsabilidade pela morte. Vimos aqui reproduzirem-se os conflitos que, em 1965, jogaram a família contra o segundo casamento de Garrincha, o que o fez deixar Pau Grande para viver com Elza Soares, consagrando assim um idílio iniciado durante a Copa do bundo de 1962. A explosão teatral desse querer doméstica diante da multidão que velava o corpo prolongou a exibição permanente que a imprense fazia da vide de Garrincha durante seus últimos anos. A polícia interveio para serenar os mimos.

A segunda discussão surgiu quando um torcedor cobriu o caixão com a bandeira do Botafogo, time em que Garrincha jogara durante mais de dez anos o sei melhor futebol. Um sobrinho do falecido rejeitou esse bandeira, alegando que Garrincha gostaria de ser enterrado sob as cores do Brasil. Percebemos aqui o ressentimento da família, partilhado par Elza Soares quando de seu casamento, contra o clube que o havia explorado através de contatos miseráveis, sem relação com a suai fama, e de jogos freqüentes demais, que ele só podia enfrentar com a injeção repetida de medicamentos em seus joelhos doentes. Mais uma vez, Nilton Santos interveio para resolver a questão: ele conseguiu, não sem emoção, convencer a família a deixar sobre o caixão as duas bandeiras, que simbolizavam igualmente os momentos de glória de Garrincha. Nilton Santos representou então o elo comum entre seus companheiros de time, os campeões de 1958 e 1962, e uma tradição anterior encarnada por certos jogadores da Copa do fundo de 1950, como Ademir Menezes e Barbosa, o goleiro negro daquela derrota. Sua presença no velório de Garrincha pôs em evidência a ausência de outros grandes nomes do passado, como Pelé, ou da época, como Zico ou Sócrates, que estavam engajados em uma nova forma de defesa associativa dos jogadores profissionais de futebol.(2)

 
 
 

 

Às 8:30 do dia 21 de janeiro, o corpo partiu para Pau Grande sobre o caminhão de bombeiros requisitado desde o transporte para o Maracanã. Sobre caminhões similares os campeões do mundo de 1958 haviam recebido os vivas da multidão carioca. Todas as torcidas organizadas de diversos clubes acompanhavam o cortejo fúnebre. Ao longo de todo o percurso, bandeiras do Brasil e dos clubes pendiam das janelas, como durante os jogos decisivos do campeonato nacional e, é claro, da Copa do fundo. Isso acontece porque, desde a Copa de 1950, ocorrida no Brasil, o futebol desperta um interesse extraordinário, que só fez crescer com as vitórias de 1958 e 1962, agigantando-se com a vitória em 1970 no México, primeira a ser acompanhada ao vivo por milhões de telespectadores, que paravam de trabalhar na hora dos jogos. Em junho de 1982, uma enorme mobilização popular, com ruas decoradas e pinturas murais, ocorreu durante a Copa perdida na Espanha.(3) A diferença, no caso, devia-se à predominância das classes populares no decorrer da manifestação e ao caráter insólito do trajeto, tratando-se do enterro de tamanha personalidade. Normalmente, na verdade, ainda que sejam de origem modesta, políticos, cantores ou compositores de música popular e atores de rádio e TV são todos sepultados nos cemitérios principais do Rio. Garrincha, por sua vez, foi levado a um cemitério da periferia, que ninguém poderia imaginar que um dia atrairia tamanha multidão de admiradores.

Na Avenida Brasil, principal saída do Rio, margeada por armazéns comerciais, fábricas, bairros pobres e favelas, massas compactas de pessoas agruparam-se, bandeiras na mão, sobre as passarelas de pedestres e sobre os viadutos. O trânsito estava totalmente paralisado, e os automobilistas também se viram obrigados a ver passar a procissão. A concentração humana só faria aumentar à medida que o cortejo chegava ao município de Magé, cujos habitantes identificavam em si uma origem comum com Garrincha.(4) A partir da divulgação do enterro pela mídia, nas primeiras horas da manhã, milhares de pessoas partiram rumo a Pau Grande, de trem, ônibus, carro ou mesmo a pé, no caso dos habitantes da região. A partir da cidadezinha de Imbariê, a 20 quilômetros de Pau Grande, o tráfego estava consideravelmente mais lento, em função da afluência de carros e pedestres. Muitos abandonavam seus veículos e continuavam a pé, radinho no ouvido, acompanhando o acontecimento pela transmissão de rádio, como quando iam a um estádio assistir a um jogo. Trens suplementares foram fretados e os condutores paravam suas máquinas perto do cemitério, tocando o apito. Um cartaz preso a uma árvore na entrada de uma fábrica das proximidades proclamava: "Garrincha, você fez o mundo sorrir e agora o faz chorar." O cortejo, que levara mais de duas horas para percorrer os 65 quilômetros desde o Maracanã, parou primeiro na igreja de Pau Grande para um ofício fúnebre. A igreja, edificada em 1910 pela fábrica de tecidos América Fabril, com capacidade para 500 fiéis, foi invadida por uma multidão estimada em 3.000 pessoas. A entrada do caixão na nave fez a tensão aumentar tanto que o padre julgou impossível celebrar a missa prevista, contentando-se em benzer o corpo. Os próximos de Garrincha, sua família e seus amigos de Pau Grande foram relegados ao segundo plano pela invasão dessa multidão anônima, vinda de todo o Grande Rio. Mesmo assim, alguns deles tiveram unia participação mais ativa no desenrolar do sepultamento do jogador. como o seu antigo chefe de seção na fábrica, que tratou da materialização do enterro junto à administração do cemitério.

A mesma confusão da igreja repetiu-se naquele local, ocupado por cerca de 8.000 outras pessoas desde a manhã. Havia pessoas montadas em túmulos, em galhos de árvores e até mesmo nos tetos das casas da vizinhança. A cova havia sido cavada na última hora, tratando-se apenas de um túmulo sem lápide, onde jazia um irmão de Garrincha, falecido anteriormente. Os torcedores botafoguenses montaram guarda para não deixar os "de fora" entrarem, nem mesmo sendo da família. Quando o caminhão chegou, o caixão foi levado nos ombros de anônimos, provavelmente torcedores do clube, até o local do túmulo. E foi nesse momento que descobriram que a cova não era grande o suficiente para acolher o luxuoso caixão. Todas as vicissitudes dos enterros populares eram evidentes nessa cerimôrúa improvisada, perturbada pela afluência desproporcional ao local: faltou terra para cobrir o caixão: além de flores já murchas, jogou-se na cova capim cortado nas proximidades do cemitério pela população local. Os torcedores do Botafogo entoaram o hino nacional, sendo logo acompanhados pela assistência; em seguida veio o hino de seu clube, cantado por menos pessoas. Eram 13:30 quando a multidão e a imorensa se retiraram, deixando o cemitério semi-destruído.(5)

Uma canção de gesta mediática

Podemos afirmar que a mídia originou as manifestações populares, pois a rapidez com que a notícia do falecimento de Garrincha foi divulgada e a carga emocional que nela foi investida contribuíram fortemente para mobilizar a multidão de torcedores e adeptos do futebol. Mesmo assiní, a amplitude dessas manifestações ultrapassou as previsões e tornou-se, por sua vez, um acontecimento de importância jornalística. Seu caráter estranho e inusitado foi registrado pela imprensa e reforçou a necessidade de explicar a posteriori toda a vida de Garrincha.

 
 
 

 

Na verdade, sua morte inverteu a inclinação descendente de uma vida que chegara ao último grau da humilhação, a uma verdadeira morte social, recolocando subitamente em evidência seus triunfos passados e sua lenda de herói do futebol brasileiro. Tudo acontece como se alguns setores da imprensa, desde os repórteres esportivos mais conhecidos até certos jornalistas políticos importantes, tivessem tomado essa vida para construir uma verdadeira canção de gesta moderna, pela interposição da mídia.(6) Na semana seguinte, os principais jornais do Rio e de São Paulo publicaram longos artigos sobre Garrincha em suas melhores páginas. Os mais célebres cronistas esportivos escreveram sobre ele ou desenterraram antigos artigos. O então diretor de jornalismo da TV Globo, Armando Nogueira, antigo comentarista esportivo, republicou no Jornal do Brasil sua "crônica preferida", em que defendia a realização de um jogo de despedida para Garrincha, em "reverência e reconhecimento à obra de um herói".

Esse empreendimento tornava-se ainda mais necessário porque, ao contrário de grandes nomes da política, da economia ou da cultura, que falam ou escrevem a respeito de si mesmos, ou mesmo de um campeão como Pelé, que encomendou a jornalistas livros autobiográficos traduzidos por todo o mundo, Garrincha era um homem lacônico, que só falava, por assim dizer, com o seu corpo, com o seu jogo. Exatamente por caracterizar-se por um estilo particular, pelo amor ao jogo pelo jogo e por uma ausência aparente de estratégia em sua carreira profissional - coisas que o faziam parecer "puro" ou "ingênuo" -, ele não tinha um discurso público sobre nada, nem mesmo sobre o futebol. Assim, no dia 23 de janeiro de 1983, quando muitas crônicas a seu respeito foram publicadas, o Jornal do Brasil publicou extratos de uma das suas raras entrevistas radiofônicas, com participação de diversos jornalistas esportivos; era um discurso pessoal, mas não desvelava o mistério em torno de sua vida. O jornal concorrente, O Globo, preferiu conformar-se com o silêncio do jogador e publicar no mesmo dia uma longa entrevista "exclusiva" com seu "porta-voz autorizado", seu compadre Nilton Santos, que, ao contrário de Garrincha, fornece muita informação. Por sobre o silêncio de Garrincha intervém também uma abundante literatura interpretativa produzida por jornalistas, mas também por escritores-cronistas de futebol, como Nelson Rodrigues, ou poetas e cronistas, como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos. O resultado mais famoso da utilização de Garrincha como matéria-prima da arte ainda é o filme Garrincha, Alegria do Povo, cujo título faz alusão à conhecida cantata de Johann Sebastian Bach, Jesus, Alegria dos Homens. Esta expressão ficou desde então associada ao jogador, sendo retomada na maior parte das manchetes que anunciaram a sua morte.

Nos diversos balanços jornalísticos dessa vida tão conhecida e, ao mesmo tempo, tão misteriosa, algumas questões sempre vinham à baila. A primeira diz respeito à importância específica de Garrincha para o futebol. Outra trata de como ele pôde atingir esta situação apesar de as circunstâncias serem tão desfavoráveis. Estas interrogações sobre a originalidade de seu estilo de jogo e seu comportamento "fora do campo" no meio do futebol profissional conduzem todas à sua origem social, ao famoso caráter "camponês" de que falava Araujo Netto, jornalista político e correspondente em Roma do Jornal do Brasil. Comparado a Carlitos (após uma crônica escrita em sua homenagem por Carlos Drummond de Andrade) devido aos efeitos cômicos de seu futebol, Garrincha, como o personagem de Chaplin, realmente aparentava uma "simplicidade" muitas vezes atribuída a suas origens populares, através de observações em muitos casos eivadas desse etnocentrismo de classe tão freqüente nas descrições jornalísticas de acontecimentos ou fenômenos relativos às classes populares brasileiras. Ele tanto era visto como o campeão carismático de um futebol inesperado e único, quando visto como jogador em ação, quanto era reduzido às suas origens, quando visto como símbolo social, passando então por um simples camponês que chegara por acaso na competição profissional, onde ele se comportava na melhor das hipóteses como um simplório e na pior corno um débil mental. Ainda que tivesse sido pressentida, a ligação entre o seu estilo de jogo e o seu pertencimento social nunca foi pensada de maneira explícita, e a questão ainda permanece: em quê a sua maneira de jogar traía ou evocava - mais do que a de seus colegas de profissão - essa famosa origem popular, compartilhada, no entanto, pela maior parte dos jogadores brasileiros de sua geração?(7)

 
 

 

Um estilo de jogo imprevisto e desconcertante

Garrincha entrou para o futebol profissional em 1953, aos 19 anos de idade. Até então, ele jogara no time amador principal da fábrica por quatro anos. Em um dos campeonatos disputados entre fábricas e empresas no interior do estado do Rio, ele foi notado por um olheiro(8), antigo jogador do Botafogo, que lhe deu uma carta de recomendação, para que ele pudesse treinar no clube. Garrincha, portanto, seguiu o mesmo trajeto de todos os jovens operários ou crianças de origem popular, que começam jogando pelada - ou jogos de bairro, disputados em qualquer campo, com qualquer tipo de bola, muitas vezes de pés descalços, de onde vem o nome -, passando em seguida a times organizados, a partir dos quais, se conseguirem fazer-se notar pelo futebol ou se mobilizarem alguma relação social, podem pretender tentar a sorte ou treinar em um time da primeira divisão.(9) Antes de chegar ao Botafogo, Garrincha apresentara-se em dois outros clubes grandes do Rio, o Vasco da Gama e o Fluminense, que o recusaram por razões médicas e por seu tipo "camponês". Ele realmente apresentava uma deformação nas pernas, que lhes dava a forma de dois arcos paralelos curvados para a esquerda como se houvessem sido atingidas por uma enorme rajada de vento.(10) Em função talvez dessa dupla recusa, ou ainda, como ele afirmou posteriormente, devido ao fato de seus horários de trabalho como operário o impedirem de treinar durante a semana em um clube distante, o fato é que Garrincha só se apresentou ao Botafogo um ano após receber a carta de apresentação do olheiro.

Nesse clube, onde a recomendação foi levada a sério, ele foi submetido ao rito de iniciação dos candidatos a jogador, que consistia em um teste no campo com os membros do time principal. Seu desempenho então faz parte de seu mito de origem. Colocado como ponta-direita, ele encontrou diante de si Nilton Santos, o lateral-esquerdo da seleção brasileira, cuja celebridade ele ignorava por completo. E, não contente em driblá-lo muitas vezes seguidas, ainda encontrou um meio de passar a bola por entre as suas pernas. Nilton Santos pediu imediatamente ao treinador que o contratasse, para não ter o azar de enfrentá-lo um dia com as cores de outro clube. Seu primeiro jogo profissional só fez confirmar os resultados do teste: entrando no segundo tempo, com o seu time perdendo, ele conseguiu virar o jogo ao marcar dois gois. A partir desse momento, ele passou a desempenhar um papel importante na ascensão do seu clube, que ganhou o Campeonato Carioca de 1957. Consagrado o melhor jogador da competição, Garrincha foi chamado no ano seguinte para a seleção nacional, que partia para a Copa do Mundo na Suécia.

O traço mais notável de seu jogo é uma certa reinvenção do estilo do ponta-direita. Atuando ao longo da linha lateral, este último é geralmente lançado pelos jogadores do meio de campo; ele então corre para a linha de fundo tentando ultrapassar o lateral esquerdo, ou qualquer outro jogador adversário que o confronte, para poder centrar. Garrincha, no entanto, freqüentemente levava ele próprio a bola desde a metade do campo. Além disso, ele tinha um drible para a direita, sempre o mesmo, que ainda que previsível não era menos imbatível. Ele atraía, chamava o adversário e o driblava, muitas vezes seguidas, em uma série de duelos nos quais geralmente era vencedor, o que divertia muito o público, mas, mais que tudo, desorganizava e desmoralizava o time adversário.

"As pernas em arco, curvadas para o mesmo lado, quase as de um aleijado, sequer deveriam permitir-lhe caminhar direito. alterando tão radicalmente o eixo de seu corpo, desequilibrando-o para a direita, na 
certa deveriam fazê-lo cair toda ver que tentasse correr. E, no entanto, esse antiatleta, desafio à medicina esportiva, era um fio de prumo, um homem que só caía quando derrubado. E que, pelo contrário, desequilibrava os outros. Como explicar esse fenômeno?" (Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 1983). A eficácia do drible de Garrincha parece ligada à sua estranha compleição física, mas também à sua enorme capacidade de aceleração. O mais espantoso era a lentidão com que ele levava a bola, a sua maneira de parar completamente em frente ao adversário para subitamente arremeter e, graças à sua impulsão extraordinária, passar de uma aparência de desequilíbrio instável a uma corrida que desequilibrava o jogador adversário, parando novamente com o pé sobre a bola, enquanto o adversário continuava, levado pela inércia. Outros jogadores investiam então, e Garrincha sabia explorar imediatamente a brecha aberta na defesa adversária. Usando uma analogia militar, os jornalistas esportivos falavam sobre um estilo de "guerrilheiro".(11) "Vinha cá na intermediária, recolhia a bola: velocidade zero. Num segundo, dava-se o arranque, um metro adiante, aquela explosão muscular lançava-o no espaço com a leveza de um passarinho (...). Bastava frear o corpo, arrancar de novo pela direita, e lá se ia por terra o equilíbrio universal dos laterais. Saibam os matemáticos que muitas vezes ele parecia deixar no meio do caminho, às quedas, seu próprio centro de gravidade: e continuava de pé, pela direita, fluente como uma queda d'água. Lançado no processo do drible, transfigurava-se: era Chaplin, esculpindo no vento uma sucessão maravilhosa de gestos cômicos; era o toureiro, inventando verônicas que a multidão saudava, cantando olé; era São Francisco de Assis, engrandecido na humildade com que sofria os pontapés do desespero.( ...) Chegava à linha de fundo, os beques cercando a área, o espaço minguando... um metro, meio metro, 'ele não tem mais campo, vou dar o carrinho agora'. Amarga ilusão: para um drible dele, a superfície de um lenço era um latifúndio. E o centro, meia-distância, rasteiro ou aéreo, punha a bola aos pés do artilheiro" (Armando Nogueira, "Mundo velho sem porteira", Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1983).

A particularidade de Garrincha está nesse estilo de pelada, fugindo às regras tácitas e à tensão da competição, ainda que posto ao serviço de um jogo altamente competitivo. Ao contrário de Didi, o grande meio-de-campo negro do Botafogo, de Pelé, de Zizinho, ou, mais tarde, de Zico, todos estilistas brilhantes, Garrincha tinha um enorme desempenho sob as aparências do divertimento.(12) Mas pela maneira implacável com que ele perfurava as defesas adversárias, reproduzindo sempre o mesmo jogo de dribles e fintas, ele revalorizava a sua posição de ponta, que não era tão evidenciada quanto a dos meios-de-campo. Na Suécia, ele fez uma entrada estrondosa na cena internacional, quando do jogo contra a União Soviética: desde o começo do jogo, ele usou tranqüilamente o seu drible para avançar e recuar, sempre sério, ainda que todo o público estivesse rindo, antes de partir rumo à linha de fundo, de onde ele centrava ou chutava ao gol de maneira muito perigosa para o goleiro russo.(13) No jogo final contra a Suécia, os dois primeiros gois do Brasil, que reverteram a vantagem inicial dos suecos, foram resultado de dribles de Garrincha na lateral direita seguidos de cruzamentos perfeitos para o centroavante Vavá.

Mas essa entrada em cena é igualmente significativa dos azares de sua carreira esportiva; ainda que representasse uma arma poderosa, Garrincha ainda não tinha a confiança do treinador e dos dirigentes da seleção. O mundo futebolístico sabia de sua oposição surda a esses dirigentes, que tentavam submetê-lo a seus próprios esquemas táticos. Foi apenas no terceiro jogo, após um empate com a Inglaterra, que uma comissão de jogadores experientes (Nilton Santos e Didi entre eles) obteve a entrada de Garrincha e Pelé (cuja inexperiência era temida: ele só tinha 17 anos). Assim, Garrincha precisou refazer suas provas, do mesmo modo que em 1953, ao tornar-se jogador profissional; demonstrar mais uma vez a sua competitividade, a eficácia de um estilo de jogo aparentemente amador e, mais ainda, a sua capacidade de criar um estilo original.

O racismo no futebol dos anos 50

Por trás das prevenções contra a imprevisibilidade de Garrincha ou a inexperiência de Pelé parecem esconder-se também antigas crenças sobre a fragilidade dos jogadores negros em competições internacionais. E foi a um "enegrecimento" progressivo da Seleção que assistimos durante o desenrolar da Copa do Mundo de 1958, inicialmente no ataque e depois na defesa, com a entrada de Djalma Santos, que já fora o lateral direito da Copa de 1954. A participação de Garrincha nessa vitória e na de 1962 (para a qual Pelé, contundido no segundo jogo, contribuiu pouco) simboliza nitidamente o feito desse conjunto de grandes jogadores: fazer esquecer as duas derrotas precedentes, assim como os preconceitos que haviam então servido de explicação. Certamente não foi por acaso que muitos jogadores da Copa de 1950 estiveram presentes no funeral de Garrincha, enquanto vários contemporâneos seus e atletas então em atividade não compareceram.

Como mostraram Guedes, DaMatta e Vogel, a final perdida em casa em 1950, contra o medíocre time uruguaio, quando os brasileiros eram os favoritos após uma competição brilhante, levantou discriminações dissimuladamente racistas contra o lateral-esquerdo Bigode e o goleiro Barbosa, dois negros que serviram de bode expiatório, por terem tido o azar de contribuírem para os dois gols do time adversário. Esta derrota - certamente vivida como "uma das maiores tragédias da história contemporânea do Brasil", segundo a expressão de Roberto DaMatta, por ter sido percebida coletivamente como a perda de uma chance histórica de finalmente escapar da posição de povo destituído - funcionou como metáfora das outras derrotas da sociedade brasileira, trazendo de volta as velhas teorias racistas sobre as causas do atraso dessa sociedade.(14) Ela até mesmo serviu de ponto de partida e base empírica para a redação de obras que consideravam o futebol um "laboratório", onde seriam vistas operando imediatamente as principais características do povo brasileiro.(15) O melhor exemplo é dado pelos dois livros de João Lyra Filho, que se define como "cientista social". Este antigo conselheiro do Tribunal de Contas, professor e ex-reitor da Universidade do Estado do Rio, foi dirigente esportivo e chefe da delegação brasileira na Copa do Mundo de 1954. Chamando-se justamente Taça do Mundo de 1954 e publicado nesse mesmo ano, seu primeiro livro retomava o relatório que ele fizera à CBF para responder às críticas da imprensa. O segundo, publicado em 1973 e intitulado Introdução à sociologia dos esportes, destinado, portanto, a outro público, reformulava ainda assim a essência das teses do primeiro, alimentadas por suas próprias observações como chefe de delegação e por alguns documentos, como os bilhetinhos repletos de erros de ortografia que os jogadores lhe remetiam durante a competição. Ele empreendeu uma comparação entre os jogadores brasileiros e os húngaros, que haviam tirado o Brasil da disputa ao ganharem de 4 a 2 nas quartas de final. Traçando um paralelo com esses jogadores, que ele considerava os europeus por excelência, o autor ressaltava que os brasileiros sempre estavam do lado dos instintos contra a razão e do lado da imaturidade e da instabilidade nervosa, em oposição à maturidade a ao autocontrole, e que, finalmente, esses defeitos eram o produto da mestiçagem e herança da raça negra.

Foi, portanto, em uma conjuntura em que essas explicações eram respeitadas por dirigentes do futebol brasileiro que apareceu Garrincha. Mas seu senso prático do jogo baseava-se no sentido contrário ao dessas análises e dos fatos em que deveriam estar fundadas. Esse homem de pernas tortas traz em seu corpo e em sua compleição física todos os estereótipos do brasileiro pobre, fazendo-se notar até mesmo entre seus companheiros de time, cuja origem era assemelhada. Mas do mesmo modo que ele transformou uma suposta deficiência física em um capital físico, ele inverteu também certos traços socialmente estigmatizados em um sentido do jogo imprevisto e de desconcertante. Ele encarnou ao exagero as características, marcas e sinais em que se baseavam as ideologias racistas e o etnocentrismo de classe, fazendo deles os elementos indispensáveis ao sucesso de seu estilo de futebol.(16)

Sentido de jogo e habitus de classe

Após a morte de Garrincha, o mistério permanecia inteiro para a imprensa, que sempre reduzira as qualidades desse corpo em ação a um fato único, de ordem individual, ao produto de um dom, de uma espécie de genialidade, ou apenas simplesmente a uma "natureza". Contudo, podemos ver a excelência toda pessoal do jogo de Garrincha como uma eficiente transformação e reconversão de um estilo de amador dentro do futebol profissional. Esse jogador, na verdade, é fruto de uma tradição operária de futebol amador, estimulada e praticada dentro de instituições esportivas geridas pelas fábricas ou empresas.

Tudo indica que as empresas, especialmente industriais, desempenharam um papel importante na propagação do futebol no Brasil. A historiografia desse esporte sustenta ter sido o brasileiro de origem inglesa Charles Miller o introdutor, em 1894, do futebol no país: ao voltar de período de estudos na Inglaterra, ele trabalhou pela adoção do jogo pelos membros de clubes ingleses de São Paulo. O São Paulo Athletic Club criou o primeiro time de futebol do país, mobilizando executivos britânicos da Companhia de Gás, do Banco de Londres e da São Paulo Railway. Uma segunda formação nasceu entre os filhos da alta burguesia nacional que estudavam no Mackenzie College, em São Paulo. Logo muitos clubes reservados para as elites adotaram o futebol, além de outros que foram criados a partir da virada do século, como o Fluminense Football Club, no Rio. Até os anos 40, muitos clubes, o Fluminense inclusive, recusavam-se a aceitar jogadores negros, até mesmo após a criação do futebol profissional. Alguns, por outro lado, como o Bangu Atlético Clube, fundado em 1904 pelos empregados ingleses da fábrica de tecidos Bangu, no subúrbio carioca, recorreram rapidamente a esportistas de origem popular, por não terem como compor times inteiramente ingleses. Foi assim que assalariados brasileiros, majoritariamente operários, começaram a treinar no Bangu, abrindo as primeiras perspectivas de carreira de operário-jogador. Em seguida, os outros clubes passaram a ter necessidade de ir aos subúrbios, onde o futebol era cada vez mais praticado, para contratar jogadores em times de bairro, de fábricas ou de empresas. Em Pau Grande, mais especialmente, a fábrica de tecidos da Companhia América Fabril - que possuía quatro outras instalações apenas na cidade do Rio - começara desde 1919 a montar times de futebol através da associação de trabalhadores, em estreita ligação com a administração.(17)

 
 
 

 
 

A rede de ligas que se formara de modo disperso desde o começo do século passou a ser controlada pelo Estado em 1941, apesar das opiniões conflitantes sobre se deveria ser mantido o amadorismo do esporte ou, ao contrário, se ele deveria ser ainda mais profissionalizado. Esta organização centralizada é apenas uma das manifestações da constituição de um campo especializado do futebol, que, especialmente graças ás transmissões radiofónicas a partir dos anos 30, se tornara o primeiro esporte de massa. Desse momento em diante, seria passível atingir o futebol profissional diretamente pelo futebol, e esta autonomização crescente permitiria carreiras fulgurantes, ainda que excepcionais, como a de Pelé, campeão do mundo em 1958 com 17 anos de idade.(18)

Ainda que a imagem que o público faz das origens de Garrincha não corresponda à de um operário, mas sim á de um camponês ou de um (bom) vagabundo, sua juventude foi de fato a de um operário do setor têxtil, nascido em uma família que habitava uma vila operária em meio rural.(19) Tais precisões parecem importantes para elucidar os "mistérios" de seu futebol livre e imprevisto. Estes podem, realmente, ser eficazmente relacionados com os mistérios da vida social cotidiana do grupo operário de onde ele proveio, pois um dos enigmas próprios aos trabalhadores habitantes dessas cidades "paternalistas" com caráter de "instituição total" é que, ao olharmos de mais perto, descobrimos terem eles uma certa mobilidade, indisciplina e "liberdade", que se exercia no próprio interior desse modo de dominação patronal que, além de sua produção industrial, controlava toda a sua vida social. Até mesmo dentro da fábrica, uma certa indisciplina e uma "cultura de oficina" podem desenvolver-se, parecendo quase indispensáveis para a boa gestão da produção.(20) Além disso, graças à exploração autônoma de recursos oferecidos pela empresa - como a concessão de roçados operários ou de terrenos para cultivo, o uso das matas ao redor para fins materiais (lenha) ou para lazer (caça, especialmente de pássaros) -, esses operários, geralmente de origem camponesa, beneficiavam-se de condições de vida mais favoráveis do que poderíamos presumir, tendo em vista apenas os seus empregos industriais. Outras estruturas ainda estavam à sua disposição, como assistência médica, associações religiosas, grupos folclóricos e casa instituição urbana que é o clube de futebol.

 
 

 
 
 

Garrincha seguiu, portanto, o mesmo caminho de tantos outros trabalhadores empregados em fábricas possuidoras de vilas operárias. Nascido em uma família inteiramente voltada para a empresa, o seu próprio nome mudou ao entrar para a fábrica. De Manuel dos untos, sob a instigação de seu chefe de seção, ele tornou-se Manuel Francisco dos bantos, retomando o nome de batismo de seu pai, Amaro Francisco dos Santos, para evitar confusões com os outros Manuel dos Santos da seção.(21) Algumas biografias publicadas pela imprensa, assim como o comentário do filme Garrincha, Alegria do povo,indicam que, graças à sua performance no futebol, Carrincha escapou de ser demitido. Efetivamente, ele foi rapidamente notado como um bom jogador, podendo, portanto, seguir esta espécie de carreira informal prevista nas fábricas para os operários jogadores, que passam à margem dos conflitos com chefes e contramestres, e portanto à margem dessa valsa de demissões e recontratações que marca o compasso da vida dos jovens trabalhadores das vilas têxteis.(22) Nessas condições, sua indisciplina e seu absenteísmo na fábrica, explorando ao extremo o lado lúdico da vida operária, são tolerados em vista do começo promissor de sua carreira de operário-jogador, enquanto os outros jovens não têm outra saída que não o aprendizado técnico disciplinado de uma profissão de operário que talvez pudesse dar-lhes acesso aos postos de contramestre na fabrica.

Manuel Francisco dos Santos deveu seu apelido "garrincha" ao gosto marcado que manifestara desde a infância pela caça aos pássaros e sua criação em gaiolas.(23) Ao contrário das famílias camponesas, que inculcam desde muito cedo nos filhos o senso de responsabilidade e projeto para tudo o que diz respeito à exploração agrícola e ao trabalho que ela requer, as famílias operárias manifestam de maneira geral uma grande permissividade quanto ao lazer de suas crianças, como que compensando antecipadamente a fatalidade do excesso de trabalho industrial. E nas fábricas situadas no meio rural, esses divertimentos juvenis concentram-se particularmente em torno da utilização dos "recursos naturais" oferecidos pela empresa. Na idade adulta, essa margem de liberdade poderia transpor-se para atividades mais "produtivas", desigualmente permitidas ou incentivadas pela fábrica, como o cultivo, solitário ou familiar, dos terrenos baldios ou dos roçados operários, os pequenos consertos, a "bricolagem" ou o artesanato - em suma. todas as formas de trabalhos suplementares ao trabalho assalariado. (24) Garrrincha pertencia, portanto, a esse subgrupo de operários que investia muito tempo e motivações nas atividades menos controladas pela companhia - em oposição não apenas ao trabalho na fábrica, mas também à formação na escola criada pela empresa ou à participação em suas diversas obras sociais.

Os operários mostram-se hoje em dia nostálgicos dessa relativa liberdade que, em muitas fábricas, acabou em torno dos anos 60, quando o patronato se desinteressou por tudo que não fosse diretamente ligado à produção industrial, tomando de volta as vantagens não-monetárias concedidas até então, muitas vezes ocasionando protestos e resistências que contribuíram para abalar a legitimidade de sua dominação paternalista.(25) A força desses relatos nostálgicos mostra a ambigüidade dessa relação entre as concessões patronais e as práticas operárias: o observador pode ver interstícios, brechas ou contradições no sistema de dominação, permitindo às famílias operárias a "recuperação" em seu favor de algumas instituições paternalistas ou, ao contrário, ver nessa ilusão de recuperação e na satisfação atingida a posteriori pelos operários o grau último do sucesso de uma política social que visa a minimizar frustrações e conflitos, organizando ao mesmo tempo uma superexploração eficaz. Seja como for, durante seus anos de juventude, Garrincha pareceu ter encontrado seu equilíbrio, inicialmente como aprendiz e posteriormente como operário na fábrica, jogando com essa ambigüidade entre um mínimo de disciplina e assiduidade ao trabalho e um máximo de atividades paralelas, principalmente o futebol, que, patrocinado pela fábrica, o recuperará por sua vez para o status aceito de operário-jogador.

Alguns jornalistas esportivos, como vimos, percebiam o estilo de jogo e o comportamento de Garrincha como sendo o de um camponês, apagando a vila operária na imprecisão de um fundo longínquo de paisagem rural. Outros observadores pareciam ver nele o milagre de inspiração produzido espontaneamente por uma criança pobre que jogava pelada.(26) Outro, finalmente, como Mário Filho, supunha haver uma ligação entre o estilo de jogo de Garrincha e sua origem social, apesar de enfocar mais a prática infantil da caça, sem relação nenhuma com o universo social da vila operária. "Só se compreende Garrincha identificando-o com o caçador. Ou, melhor, com a caça. Foram os passarinhos, as pacas, as gambás, que lhe ensinaram o melhor dele em futebol. O drible de Garrincha é fuga de bicho ou de um passarinho." (27) Ora, para além das evidências imediatas dessa natureza esportiva, que aparentemente não revelariam nada mais que uma personalidade publicamente conhecida e apreciada por uma forma de drible imitando os movimentos de esquiva instintivos dos animais, não seria também possível desvelar certos aspectos mais escondidos de uma identidade social(28), no caso a presença dessa identidade tão ambígua de Garrincha no seio da vila operária? Não poderíamos efetivamente reconhecer em seu estilo de jogo, que provou a eficácia de um certo amadorismo na competição profissional, que revolucionou o drible e restaurou a importância do ataque pela ponta, que destruía as táticas preestabelecidas pelos treinadores e suas escolas, que desmoralizava a defesa adversária fazendo gargalhar a multidão, mantendo ao mesmo tempo a seriedade e a humildade do pequeno artesão preso à sua obra, algumas das disposições que essa criatividade operária - limitada e tendencialmente desobediente, e em todo caso ambígua e circunscrita a certas atividades autônomas e marginais oferecidas pela cidade operária-mobiliza?

Garrincha nunca chegou a estar à vontade na situação de esportista profissional. Aos olhos dos amantes do futebol, a falta de jeito que ele mostrava na condução de sua carreira até mesmo reforçava a pureza de seu jogo. Se este último realmente fazia a "alegria do povo", é porque ele passava menos por um espetáculo produzido com meios profissionais, através do treinamento e da disciplina, do que por uni sentido inato do "jogo pelo jogo", que poderíamos qualificar como um habitus feito corpo e jogo, e isto de uma maneira muito diferente da dos outros jogadores.

Seu melhor futebol durou apenas dez anos, de 1953 a 1963, tendo como ápices a Copa do Mundo de 1962 – onde, na ausência de Pelé, ele foi a grande estrela do time brasileiro, chegando a ser considerado o melhor jogador do mundo pelos comentaristas especializados - e o campeonato carioca, ganho pelo Botafogo no mesmo ano, graças a uma de suas mais notáveis performances. Pouco depois, começou uma longa decadência, marcada pelo fracasso do Brasil na Copa do Mundo de 1966, e a relegação progressiva de Garrincha à segunda e, posteriormente, à terceira divisão. Exaurido por artifícios médicos que deveriam ajudá-lo a superar os problemas nas pernas, ele esforçou-se desesperadamente para prolongar uma vida esportiva que nunca teve outro sentido que não o do "jogo pelo jogo" diretamente ligado à sua juventude.

Apareceu então o reverso da medalha: a exploração de sua carreira pelo mundo do futebol profissional, que o fez logo passar por um operário do esporte prematuramente acabado e que não sabia o que fazer de sua aposentadoria. Tudo se passa como se o modo de dominação patronal, que, no caso, havia permitido que se desenvolvesse em Garrincha esse habitus da criação ligado à cultura das vilas operárias, fizesse então sua revanche contra esse antigo súdito que dele se libertara parcialmente por intermédio do futebol. Pois é necessário frisar que o esporte encorajado por esse tipo de empresa era sempre apenas um lazer de amador, nunca podendo suplantar o trabalho na fábrica; que o próprio Garrincha interiorizara a tal ponto essa limitação de princípio que levou mais de um ano, depois de convidado, para tentar entrar para o Botafogo; e que, mesmo ao tornar-se um grande jogador profissional, continuou a desenvolver sua criatividade sem nunca perceber que ela pudesse desembocar em um projeto durável, como se a soubesse sempre submetida ao arbítrio patronal. Em todos os momentos decisivos de sua carreira profissional, ele teve a sorte de ter o apoio de outros jogadores, especialmente de Nilton Santos. A deferência e o respeito que ele devotava a este homem, que, mesmo sendo seu compadre, sempre desempenhou o papel de "padrinho" em sua vida, lembram a ascendência que tinham anteriormente sobre o jovem operário-jogador alguns dos seus chefes de seção, de quem dependiam o nome que ele usava e sua integração no time da fábrica. Essa ausência total de controle sobre a sua própria vida profissional levou-o a aceitar contratos lamentáveis com o Botafogo, sem nenhuma relação com a sua notoriedade. (29) Na verdade, o paralelo entre a sua passividade diante do clube e a exclusão dos trabalhadores de Pau Grande das possibilidades de recurso contra a companhia têxtil por questões salariais ou condições de trabalho é reforçado pelo fato de que até 1963 Garrincha ainda pertencia ao universo de Pau Grande, onde ainda morava, com sua mulher e suas sete filhas. Sua glória era partilhada por seus vizinhos, que, na ocasião de seu funeral, contaram à imprensa como ele voltava do Maracanã no caminhão de seus torcedores, para festejar as vitórias do Botafogo como um deles, pelos bares de Pau Grande.

Após a Copa do Mundo de 1962, seu idílio com a cantora Elza Soares o afastou de Pau Grande, mergulhando-o no mundo do show-business sem, com isso, dar-lhe condições para controlar melhor a sua carreira. As críticas de sua nova companheira, habituada aos contratos do mundo do espetáculo, à maneira com que o Botafogo o explorava, surtiram efeito tarde demais: quando ele finalmente conseguiu um contrato mais favorável, foi atingido pela artrose em ambas as pernas. Sofrendo demais, recusou-se a jogar e sofreu retenção de até 50% de seu salário. Após uma operação que não fora recomendada pelos médicos do clube, ele recuperou-se muito lentamente e não conseguiu voltar ao seu lugar no time titular. Em 1966, foi vendido ao Corínthians, de São Paulo, mas seu futebol não era mais o mesmo. Ele ainda participou da Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, na qual o Brasil foi eliminado ainda na primeira fase. Liberado pelo Corínthians, passou a jogar, de 1966 a 1973, em clubes cada vez mais fracos. Em 1973, um jogo internacional foi organizado no Maracanã para sua retirada oficial, o "jogo da gratidão". Apesar disso, esse Sísifo do futebol continuou jogando, até a sua morte, em muitos times de veteranos, sem nunca conseguir reconverter-se, seja tornando-se treinador, seja exercendo qualquer outra atividade ligada ao futebol.

A partir de 1962, sua vida profissional e privada apresenta-se, portanto, como uma sucessão de derrotas. Entre 1967 e 1968, foi recusado por diversos clubes. No fim de 1968, foi condenado por não pagar a pensão alimentar de sua primeira esposa há seis meses (escapou da prisão graças a um banqueiro, que saldou suas dívidas). Em abril de 1969, sofreu um acidente de automóvel que matou a mãe de Elza Soares. No fim do ano, conseguiu escapar de novos problemas com a justiça indo para a Itália com sua mulher. Ao lá chegar, porém, Elza pôde produzir-se facilmente, enquanto Garrincha não teve sucesso nenhum no futebol, e precisou contentar-se em trabalhar para a publicidade do escritório brasileiro de exportação de café. Em dezembro de 1973, o jogo ritual organizado em sua honra no Maracanã manifestou publicamente a sua derrota. Sua primeira esposa morreu dois anos depois, e ele teve que recolher em sua casa cinco de suas filhas, que ainda eram solteiras.

O ano de 1976 traz-lhe, apesar de tudo, uma vitória tardia: após ter uma nova filha com Elza Soares, nasceu finalmente o filho que ele sempre desejara. No entanto, a publicidade em torno do nascimento desse herdeiro fez imediatamente surgirem contestações: uma de suas antigas namoradas em Pau Grande apresentou publicamente um filho natural de quinze anos de idade. Em 1977, ele separou-se definitivamente de Elza Soares, após um ano de relações muito tensas.

Sua primeira internação hospitalar foi em 1978, por hipertensão. Garrincha casou-se novamente no mesmo ano, com Vanderléia, viúva de um antigo jogador. Em julho de 1979, sofreu nova hospitalização, por cirrose hepática. No carnaval de 1980, ele aceitou desfilar sobre um carro alegórico construído em seu louvor pela escola de samba Mangueira, mostrando na ocasião sua tristeza e apatia após a hospitalização que sofrera no mês precedente. Ainda que estivesse em plena decadência física e psicológica, Garrincha não parou de repetir os atos que marcaram toda a sua vida: em 1981, nasceu sua última filha - mais uma! - e em 1982, no Natal, ele partiu para Brasília para disputar um jogo amistoso. Logo após, ele caiu em uma forte depressão alcoólica que o levou à morte.

O rei e o povo

A virada dos anos 60 viu coexistirem no auge de sua glória os dois maiores nomes do futebol brasileiro, Garrincha e Pelé. Mas enquanto o primeiro, como vimos, decaiu rapidamente, o segundo, cuja carreira profissional continuou até 1974, teve pleno sucesso em sua reconversão, conservando até hoje um imenso renome internacional. A comparação, portanto, se impõe, desde que não cedamos à tentação tão freqüente de reduzir o que separa os dois jogadores, ambos oriundos das classes populares, a simples acasos individuais.

Pelé, que também começou em 1958 na cena internacional, de maneira espetacular, em seguida garantiu para si mesmo um sucesso constante, ainda que estivesse afastado por contusão na vitória de 1962 e na derrota de 1966. Duas vezes campeão do mundo interclubes, em 1962 e 1963, pelo Santos, ele consolidou rapidamente sua posição internacional, que atingiu o ápice com a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970, disputada no México. Ele deixou então a seleção nacional e seu clube para investirem um mercado menos exigente tecnicamente, embora capital para a expansão do futebol e para a sua própria reconversão profissional: os Estados Unidos e o time do Cosmos de Nova Iorque.

Pelé também é originário das classes populares. Mas, ao contrário de Garrincha, que sempre demonstrou sua ligação profunda com suas origens sociais, Pelé fez aparecer em público apenas a sua ligação com um pequeno núcleo familiar, seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs e sua avó. Quanto mais a imprensa enfocava a vida privada de Garrincha, menos dados individualizados sobre a sua família de origem eram encontrados. De seu pai, que ocupava postos pouco significativos, como varredor, vigia noturno ou trabalhador agrícola na fábrica ou nos domínios da companhia têxtil, só sabemos ter morrido de cirrose hepática. Nada é conhecido sobre seus outros parentes próximos. Em suma, as informações sobre a sua origem - que em geral são mais fantasiosas que reais - tratam apenas de seu meio social, não de sua família. Acontece justamente o contrário com Pelé: os dados sobre a sua família são detalhados, indivíduo por indivíduo; seus pais foram constantemente apresentados em suas declarações públicas, pelo menos no começo de sua carreira profissional, enquanto a sua vida privada se mantinha ao abrigo da publicidade mediática.

Pelé é o filho mais velho de um obscuro jogador de futebol de Bauru, no interior do estado de São Paulo, que perdera prematuramente sua chance de ascender a times mais cotados devido a contusões nos joelhos quando jogava no Atlético, de Belo Horizonte. Desde sua infância, esse filho mostrou a obsessão de obter, ele mesmo, sucesso na carreira que escapara a seu pai, vingando assim sua falta de sorte. Mesmo assim, a notoriedade local do centroavante Dondinho - apelido do pai de Pelé - havia-lhe permitido complementar seu salário de jogador com o emprego de pequeno funcionário em um posto de saúde de bairro. Ela permitiu-lhe igualmente convencer o treinador de seu clube - Valdemar de Brito, um antigo jogador de renome internacional, também aposentado precocemente em decorrência de contusões - a ocupar-se ativamente da equipe de jovens onde seu filho já brilhava.

Pelé entrara para o time após jogar peladas em seu bairro e ter sobretudo se esforçado para reunir um verdadeiro time, com sua própria camisa, graças aos modestos recursos obtidos com uma multiplicidade de pequenos trabalhos infantis. Descobrimos assim que as condições materiais de exercício do futebol preocuparam desde o início esse menino obcecado pelo fracasso de seu pai e pela carreira precocemente abortada de seu treinador. Ao contrário de Garrincha, que, destinado a ser operário, chegou ao futebol graças às obras sociais da fábrica, Pelé, que estava destinado ao futebol, teve apenas uma curta passagem, aos 13 anos de idade, por uma fábrica de sapatos, que lhe permitiu levar dinheiro para casa, atenuando com esta demonstração do seu senso de responsabilidade as reticências de sua mãe, já escaldada pelo fracasso do marido, e permitindo que continuasse a se dedicar ao futebol nos times locais.

Foi a Valdemar de Brito que ele deveu sua entrada no Santos, que já era, na época, um grande clube, bicampeão do estado de São Paulo. Na verdade, Valdemar de Brito, treinador de futebol e inspetor do trabalho em Bauru, ao mesmo tempo, desejava mudar-se para São Paulo. Para fazê-lo, solicitou a intervenção de seu antigo companheiro de time, o deputado Athiê Curi, na época presidente do Santos, junto ao governador Jânio Quadros, para ser posto à disposição da Inspetoria do Trabalho da capital estadual. Em troca desse favor pedido àquele governador imprevisível e geralmente hostil à utilização das relações pessoais na função pública, Valdemar apresentou ao deputado um jogador muito jovem, que prometia tornar-se um atleta excepcional. Amigo da família, Brito acabou convencendo a mãe de Pelé, cuja opinião era a que contava na casa, a deixá-lo partir sozinho para Santos, onde, por não ter família no local e contar apenas 15 anos de idade, habitaria permanentemente nessa "instituição total" do futebol da época, a "concentração", ou seja, a pensão onde os jogadores eram isolados logo antes dos jogos. Lá Pelé levava uma vida espontaneamente ascética, indo mesmo além das recomendações de seu pai de abster-se de tabaco, álcool e vida noturna para cuidar apenas de sua vida de atleta.

Essa disciplina profissional, verdadeira interiorização precoce das frustrações paternas, confortada pelo capital social específico legado por Dondinho no interior do mundo do futebol, favoreceu o desenvolvimento de suas qualidades técnicas, ao mesmo tempo excepcionais e múltiplas, e de uma sensibilidade extrema aos problemas materiais da profissão de jogador de futebol.(30) Enquanto Garrincha devia a essência de seu talento ao esporte amador, os dons de Pelé só foram plenamente desenvolvidos no futebol profissional. Seus 12 anos de sucesso profissional permitiram-lhe conservar até hoje o brilho de seu nome, estendendo-o a outros setores de atividade ligados ao esporte - publicidade, criação de empresas etc.

O hiperprofissionalismo do "Rei Pelé"(31) contrasta, portanto, com a forte ligação de Garrincha com uma certa cultura das classes populares: em seu período de ascensão, este último foi um representante ilustre desses epicuristas da vida cotidiana assinalados por Richard Hoggart.(32) Esse epicurismo de Garrincha, manifestado no futebol através do "jogo pelo jogo" e fora dele por um gosto irresponsável pelo sexo (33) e pelos pequenos divertimentos e lazeres de operário, o manteve indefinidamente naquele curto período de licenciosidade autorizada que é a adolescência, fazendo dele um homem indiferente ou raramente preocupado com sua vida profissional. Tivesse ele continuado operário, sua relação com o futebol seria provavelmente mais serena, já que a pelada dos "velhos" de 40 anos é, nos bairros operários, unia diversão habitual que encerra um ciclo de vida ligado a esse mesmo tipo de jogo.(34) Mas a tragicidade do destino de Garrincha consiste justamente no contraste entre o seu início brilhante, quando ele conseguiu levar a pureza de seu estilo de amador para a alta competição, e sua impossibilidade de agir conforme o seu stntus de jogador profissional.

A morte da alegria do povo

A tragédia de Garrincha, trazida à luz do dia pelo anúncio e pelas circunstâncias de sua morte, fascinou o grande público, especialmente a multidão das classes populares que acompanhou seu funeral. Essas multidões apresentavam pontos em comum com as mostradas no filme Garrincha, Alegria do Povo, na época do auge do futebol de Garrincha e de toda uma geração de brilhantes jogadores brasileiros.

 
 

 

O filme foi feito no momento em que outros diretores do Cinema Novo buscavam nos campos do Nordeste a especificidade dos dramas sociais do Brasil, como Gláuber Rocha, ao realizar Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou Nelson Pereira dos Santos, com seu Vidas Secas. Joaquim Pedro de Andrade, por seu lado, dedicou-se mais às classes populares urbanas, inicialmente através de um documentário sobre a fabricação de instrumentos de samba nas favelas ("Couro de gato", episódio do filme coletivo Cinco vezes favela), passando em seguida a interessar-se, em uma perspectiva neo-realista, pelo futebol, esse tema talvez menos dramático e político, mas não menos fortemente ligado aos meios populares das grandes cidades. Seu filme sobre Garrincha privilegia o público das gerais, essa localização térrea de espectadores, sem muita visibilidade, que corresponde aos ingressos mais baratos do estádio. Multidões essencialmente masculinas se comprimem, de pé, no nível do gramado, tendo a dificuldade de acompanhar o jogo compensada pelo contato com os jogadores quando eles vêm celebrar seus gols e vitórias junto ao público. Rostos patéticos, tomados pela angústia ou pelo entusiasmo, indivíduos das classes populares, átomos dessa multidão capturada por uma câmera em busca e em contemplação do "povo", cujas esperanças eram exaltadas pelos intelectuais naquele começo dos anos 60.(35) As tomadas finais seguem as hordas de suburbanos descendo dos trens e precipitando-se em direção ao estádio nos dias de decisão; essa multidão de passageiros corresponde ao mesmo público disperso das gerais.

O filme perde muito menos tempo com as arquibancadas, onde se comprimem os espectadores mais numerosos, que também são as maiores forças reais dos estádios, as torcidas organizadas.(36) É verdade que essas torcidas desenvolveram-se sobretudo a partir do fim dos anos 60, pela constituição de diversas facções de torcedores do mesmo time concorrendo entre si, com uma intervenção conjunta muito mais barulhenta e visível nas arquibancadas dos diversos estádios (rojões, morteiros, bandeiras gigantescas, palavras de ordem cantadas etc.), além do desenvolvimento de toda uma economia informal (venda de camisetas e flâmulas, viagens etc.).

Esses mesmos rostos de suburbanos são reencontrados nesses trens superlotados que, agora, tocam seus apitos em homenagem ao campeão desaparecido; a mesma multidão que se torna cada vez mais densa, ganhando mulheres e crianças à medida que se aproxima de Pau Grande. Porém, durante toda a cerimônia, evidencia-se também a presença das novas forças das torcidas organizadas, especialmente as do Botafogo, que tentam tirar partido desse trágico acontecimento para celebrar as glórias passadas do clube, que então, em 1983, não ganhava uni campeonato havia 15 anos. 
Não poderíamos ver, nessa apropriação do enterro de Garrincha por esses novos grupos organizados, um dos sinais da autonomização crescente do futebol profissional, cada vez mais bem estabelecido como um mundo à parte, com regras próprias e tropas especializadas? (37) Mas não seria também esse o último sinal, se isso fosse necessário, do ponto de miséria a que chegou esse jogador que, apesar de sua vontade e dos esforços de alguns dos seus amigos, não teve sequer o direito de ser inumado pacificamente entre os seus?

Ainda que a invasão da multidão tenha trazido involuntariamente à vida de Garrincha a sua última nota trágica, podemos por outro lado interpretar esse ardor popular como uma homenagem ao jogador e um desagravo à injustiça vivida por ele, que afundara após ter conhecido a glória, e cujo fim revelava nitidamente o abandono e as vicissitudes habituais da vida dos meios populares. No momento de sua morte pareceram até mesmo terem sido perdoados os "pecados" de Garrincha, que o haviam tornado tão impopular. As maravilhas de seu futebol, sua indiferença face à concorrência profissional e à ascensão social que ela permitia, sua forte ligação com suas raízes sociais e o sacrifício de sua vida que isso ocasionou, foram também traços que suscitaram a consternação coletiva.

Mas, no caso, o sentimento de perda era gerado não apenas pelo fim da grande época do futebol brasileiro, mas também pela intuição de que estavam completamente transformadas as condições sociais que haviam permitido a eclosão de um tal jogador, com uni tal estilo de jogo. Através dele desaparecia uma certa classe operária, a das vilas operárias tradicionais. E, de uma maneira mais geral, sua morte simbolizava também o fim de um certo modo de vida popular, cuja lembrança era o único resquício deixado pelo crescimento das dificuldades atuais. À "euforia" dos anos 1950-1964 - relativamente mais favoráveis às classes populares no plano econômico(38), político e das liberdades públicas - sucederam-se na verdade uma tristeza e uma certa violência primária que seria tentador associar ao sofrimento gerado pela intensificação da exploração econômica e da opressão política desde a instauração da ditadura militar (violência esta que se manifestou freqüentemente durante os anos 70, especialmente sob a forma de tumultos nos trens de subúrbio do Rio e São Paulo). A morte miserável de Garrincha simbolizou ao extremo o desaparecimento dessa "alegria do povo" gerada pelo sucesso dos anos 50, especialmente pela vitória na Copa do Mundo de 1958, na qual o Brasil finalmente se afirmou em escala internacional, ainda que através do futebol, ou seja, de suas classes populares.


Recebido para publicação em maio de 1992.


Tradução de Carlos Ramalhete.

 

ANEXO 1

"Garrincha - Manuel Francisco dos Santos - era um camponês com o apelido de um passarinho raro e arisco. Menino de 19 anos, moreno, com as pernas incrivelmente arqueadas e tortas, protegidas e movidas por uma poderosa massa muscular, considerada aberração pelos professores de anatomia. Apareceu de repente. E, de repente, os estádios cariocas melhoraram de humor. Puseram-se a rir, outra vez. Risos que de repente também ganharam a força das gargalhadas: de uma alegria incrivelmente contagiante e reparadora. Obra de um camponês simples, imaturo, alegre, rival do talento histriônico do melhor Charles Chaplin. Alguém que não se limitava a contrariar as leis da estética e da gravidade. Não respeitava, sequer, a lógica e o convencional do jogo. Estranho driblados de um drible só. O drible pensado, planejado, ensaiado, previsto e executado infalivelmente pelo lado direito. Um individualista que, ao receber um passe, nunca lhe dava seqüência, sem antes divertir-se um pouco com a bola, com o adversário e, assim, divertir a platéia. Mas que estranho individualista esse que, em seguida, se transformava no mais generoso doador de passes e de gols conhecido pelo futebol mundial. Garrincha foi tudo isso para os estádios do Brasil. Mudou a face tão angustiada - até o seu advento - do futebol brasileiro. Curou uma grande enxaqueca do nosso torcedor. Com a camisa da seleção brasileira, enquanto os meniscos e a artrose não lhe atrapalharam, sempre foi, sempre fez tudo o que todos os brasileiros - em sonho - quiseram ser e fazer, um dia, contra seus adversários: pelas suas pernas nós todos driblamos, batemos e fizemos de bobos todos os gringos do mundo".

A. Netto, 
"A morte do último gênio dos estádios", 
Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1983.

"Mas todo o esforço a que se dedicou o médico (para entender a depressão de Garrincha no fim de sua vida) só lhe permitiu uma conclusão de duvidosa utilidade terapêutica: 'Garrincha é uma árvore. Ele pertence à natureza'. Na verdade, talvez fosse mais adequado dizer que Garrincha pertencia a uma espécie determinada - e em via de extinção - do gênero humano brasileiro. Ele nasceu, cresceu e morreu homem da terra, ao mesmo tempo inocente e astuto como seus iguais, e, como eles, também, estrangeiro aos valores e formas de comportamento da cultura urbana. Pouco importa que meros 90 quilômetros separem Pau Grande do lio de Janeiro - antes da irrupção da TV, a distância cultural entre os dois lugares era intransponível".

L. Weiss e J. Castelo,

"O último inocente. Garrincha morreu sem

entender o mundo, nem o futebol",

Isto É, 26 de janeiro de 1983.

 

ANEXO 2

É possível ilustrar essa comparação esclarecedora com Pelé opondo dois filmes: Garrincha, Alegria do Povo e Isto é Pelé. Oprimeiro foi realizado em 1962, no auge da glória de Garrincha, e o segundo em 1975, no fim da carreira brasileira de Pelé. Transformados em fitas de vídeo, atualmente ambos os filmes estão entre os mais pedidos no Brasil. Mas enquanto Isto é Pelé foi imediatamente transcrito para vídeo, na previsão de um evidente sucesso comercial, o filme sobre Garrincha teve que esperar sua morte e reabilitação póstuma. Foi até mesmo necessário efetuar uma coleta para reconstituir a película, que já se deteriorara, como se houvesse sofrido o mesmo destino de seu herói. A morte de Garrincha permitiu que esse filme antigo, puro produto do Cinema Novo, tivesse, mais de 20 anos depois, devido à difusão dos videocassetes no país, um grande sucesso comercial, subitamente rivalizando com o sucesso permanente de Pelé. 

Garrincha, alegria do Povo, 1962
Isto é Pelé, 1975
Realizador: Joaquim Pedro de Andrade (1930-1988), um dos nomes importantes do Cinema Novo.
Realizador: Eduardo Escorei, nascido em 1945, antigo assistente e montador de Joaquim Pedro de Andrade e de outros grandes cineastas do Cinema Movo, ele mesmo diretor reconhecido.
Ambos os filmes foram financiados por Luiz Carlos Barreto, produtor da maior parte das realizações do Cinema Novo.
O filme começa com sequências de pelada disputadas na praia de Copacabana, nas ruas e nas zonas periféricas.
O filme começa com uma tomada de


Pelé correndo e treinando sozinho à 
beira-mar.

Esclarecimento sobre o defeito físico das pernas de Garrincha.
Demonstração das qualidades atléticas


excepcionais de Pelé.

Poucas imagens em movimento de seu estilo de jogo: era um ponta que, salvo exceção, não marcava os gois.Muitas fotos.
Multas seqüências sobre seu jogo e seus


numerosos gols: era um goleador de 
meio-de-campo.

Estilo inexplicável que continua inexplicado.
Estilo dissecado pelo próprio Pelé durante muitas seqüências de demonstração destinadas às crianças.
Apenas um curto extrato de entrevista, além de um comentário em off.
Pelé comenta largamente sobre si mesmo.
Garrincha é muitas vezes mostrado fora do campo, treinando com sua equipe, na fase de preparação dos jogos, com os


torcedores.

Pelé aparece quase exclusivamente no campo.

 

Nas cenas mundanas de cerimônias com políticos ou autoridades, Garrincha freqüentemente aparece em segundo plano.
Poucas cenas de alegria popular, sendo


então vistas desde o campo. Nos encontros com o Papa, com Robert Kennedy, com a rainha da Inglaterra, Pelé está sempre em primeiro plano. 

Muitas cenas filmadas em Pau Grande: Garrincha dança com as filhas, joga


descalço com os amigos, bebe um cafezinho com eles. Algumas tomadas do trabalho na fábrica.

Nada fora do esporte.

 

Vista final sobre a multidão de torcedores, a importância social e os significados simbólicos do futebol. Considerações intelectuais sobre o esporte e o povo. Garrincha desaparece, sendo substituído pela entidade "povo".
O auge atingido quando de seu milésimo gol. Comentários de natureza essencialmente esportiva. Última parada na imagem: os pulos de alegria de Pelé ao marcar um gol.
A "alegria do povo" é uma emoção coletiva que estoura além da pessoa de Garrincha, dissolvida na multidão.
A "alegria" de Pelé é a de "cada novo gol": é a emoção de um campeão individual que exulta diante da multidão.


NOTAS

* - Uma primeira versão deste artigo foi publicada na revista Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales em 1989, quando o autor estava em período de pós-doutorado junto ao Centre de Sociologie de 1'Education et de la Culture, na França, com bolsa da Capes, e contou com sugestões de Pierre Bourdieu, Monique de Saint Martin e Louis Pinto. Por outro lado, o artigo não teria sido feito sem as contribuições de Rosilene Alvim, Afrânio Garcia Jr., Gilberto Velho, Moacir Palmeira, Yvonne Maggie, Lygia Sigaud e Soma Gonzaga, e sem a coleta de material no Brasil por parte de Tomke Lask e Pedro de Moraes Bodé.

 

1 - Nilton Santos era padrinho de um dos filhos de Garrincha.

 

2 - Esta nova geração de jogadores e sua relação com a profissão foram estudadas por R. Benzaquem de Araújo (1980).

 

3 - O futebol é o esporte mais popular no Brasil: em 1978, de acordo com as estatísticas do Ministério da Educação, 48,6% dos atletas inscritos nas diversas federações esportivas eram praticantes de futebol, além de 10,3% que praticavam futebol de salão. A título de comparação, a natação chegava em terceiro lugar, com apenas 6,0% dos atletas, seguida pelo vôlei, com 4,8% etc.

 

4 - Na verdade, a maior parte deles não tinha mais nada a ver com a população que lá habitava ao tempo de Garrincha; um grande processo de "periferização", ou, se preferirmos, de suburbanização, desenvolvera-se em torno dos antigos núcleos de população que constituíam então as vilas operárias, como Pau Grande.

 

5 - Uma forte chuva de verão, caída logo depois, dispersou a terra que cobria o caixão. Apenas alguns dias mais tarde Nilton Santos, alertado pela imprensa, voltou ao local e pôde melhorar o sepulcro.

 

6 - Inspirei-me livremente na análise feita por G. Duby (1984), partindo das cerimônias de sepultamento de Guillaume le Marechal e da constituição em seguida da canção de gesta em sua homenagem.

 

7 - Indagações semelhantes a essas - a saber, a relação entre a contribuição artística de um indivíduo consagrado como um "gênio" e as características de sua pessoa e seu pertencimento social - são colocadas por Norbert Elias em seu manuscrito sobre Mozart, recentemente publicado de forma póstuma: "Assistimos freqüentemente à enunciação da idéia de que a maturação de um 'talento genial' seria um processo 'interior', automático, que seria acionado de alguma maneira, independentemente do destino humano do indivíduo considerado. Esta idéia é ligada a unia outra, segundo a qual a criação das grandes obras-primas seria independente da existência social de seus autores - em outras palavras, de seu percurso e de sua experiência de homem entre os homens. Assim, uni grande número de biógrafos de Mozart tende a pensar que a compreensão do artista, e portanto de sua arte, poderia se separar da compreensão do ser humano. Este separação é artificial, enganosa e inútil. (...) No caso de Mozart - em oposição, por exemplo, ao de Beethoven -, a relação do 'homem' ao 'artista' foi especialmente perturbadora para muitos pesquisadores, pois a sua imagem, ou seja, a que se ressalta nas cartas, relatos e outros testemunhos, é dificilmente conciliável com a visão ideal preconcebida que nós temos do gênio." Os mistérios do músico e do homem Mozart são depois desvendados por Elias, ao relacionar este homem com a sua experiência peculiar das relações sociais específicas construídas na sociedade de corte, à qual este autor atribui tanta importância em suas análises de sociologia histórica do que ele chama deprocesso de civilização (Cf. Elias, 1991).

 

8 - Um desses agentes dos clubes profissionais que procuram jovens talentos esportivos. Ele não foi o único olheiro a descobrir Garrincha, inas foi o único a ser lembrado pela historiografia jornalística, por ser por seu intermédio que o jogador finalmente chegou à primeira divisão.

 

9 - Ver Simone Guedes (1982, pp. 59-74), "Subúrbio: celeiro de craques", que se baseia era histórias de vida de trabalhadores que estiveram em relação com o futebol de bairro e com o esporte profissional na vila operária de Bangu. In DaMatta, Flores, Guedes e Vogel (1982).

 

10 - Entrevistado no filme Garrincha, Alegria do Povo, um professor de traumatologia, membro da direção do Botafogo, afirmava, com o apoio de radiografias, que o jogador apresentava um ''desvio bilateral de ambos os membros inferiores". Garrincha, por sua vez, declarava só haver descoberto a deformação de suas pernas pelos jornais, após ingressar no futebol profissional.

 

11 - Sem prejuízo da comparação detalhada que será feita mais a adiante com Pelé, podemos assinalar aqui que seus estilos eram muito diferentes: Garrincha procedia pela "emboscada", saindo dos córneres, enquanto Pelé investia pelo centro como a "cavalaria ligeira", enfrentando seus adversários em movimento contínuo, explorando a sua impulsão para avançar e ultrapassá-los, no limite da queda.

 

12 - Não podemos afirmar que ele se divertia tanto quanto o público... "A cara de Garrincha, séria, grave mesmo. E mais séria e mais grave quanto mais gargalhadas despertava. Como se não compreendesse, ou compreendesse menos do que ninguém o que catava acontecendo. Era o que explicava a incolumidade de Garrincha. Outro que fosse fazer o mesmo faria uma vez. Na segunda tomaria um bofetão. Muito jogador, depois de derrubado por Garrincha, levantava-se para brigar. Mas se desarmava vendo um Garrincha desajeitado, humilde, quase pedindo desculpas. O jeito era sair para outra. Tentar, inutilmente, mais uma vez, tomar a bola de Garrincha, para de novo cair mais uma vez, de pernas para o ar, e provocar a gargalhada da multidão". Ver M. Filho (1964, p. 384). A fisionomia de Garrincha e sua seriedade no jogo inclinariam reais a compará-lo a Buster Keaton, "o homem que nunca sorri", que a Charles Chaplin. Além disso, o fim miserável de sua vida só faz reforçar a pertinência da comparação.

 

13 - "O soviético Boris Kuztnetsev entrou para a história, no dia 15 de junho de 1958, como o primeiro João da carreira de Garrincha. A partir desse dia,João serviu para designar todos os jogadores encarregados de marcá-lo. Eles eram todos intercambiáveis, sem distinção de time nem de nacionalidade, e nenhum deles conseguia parar Garrincha" (Folha de S. Paulo, 20/01/84). A imprensa, nesse caso, apenas retomou e popularizou uma expressão de Garrincha, que ele usava basicamente para exprimir a sua indiferença quanto às tramas do futebol e à rivalidade entre jogadores. Deste ponto de vista, o primeiro João de sua carreira foi Nilson Santos, que ele ridicularizou quando do teste no Botafogo.

 

14 - Ver DaMatta, Flores, Guedes e Vogel (1982, p. 31-32). Os trabalhos coordenados por Roberto DaMatta analisam a especificidade social do futebol, no qual os autores desses trabalhos vêem uma dramatização da sociedade brasileira, revelando alguns de seus aspectos e dissimulando outros.

 

15 - Retomo aqui as análises desenvolvidas por Simone Guedes (1988) sobre essa literatura.

 

16 - As explicações mais ou menos intencionalmente racistas sobre as peculiaridades do futebol brasileiro não eram uma exclusividade dos dirigentes esportivos brasileiros, tendo formulações correspondentes internacionais como esta, publicada em 1954: "O jogo dos brasileiros é aquele que nos parece ter atingido o mais alto grau de refinamento. Suas equipes compreendem um grande número de jogadores de cor, que praticam um futebol instintivo, um futebol no estado de natureza, poder-se-ia dizer, tanto seus movimentos, gestos, mobilidade são fáceis e desenvoltos. O que nós tornamos por refinamento não é senão a expressão de suas aptidões naturais, de um gosto inato pela manipulação da bola. As qualidades de flexibilidade das quais fazem prova são bem as de sua raça. Não é questão por conseguinte de rivalizar com eles neste domínio. É por meio de outras qualidades que é conveniente combatê-los, por uma ação mais direta, por um sentido mais objetivo, um espírito mais realizador, pois na sua preocupação de demonstração e de busca da realização teatral, é bem verdade que esses brasileiros esquecem bem freqüentemente o essencial do jogo, isto é, a conquista do gol, em uma palavra o resultado. (...) Esta preocupação [marcar gols] parece secundária entre os brasileiros, embora nas suas excursões pela Europa sejam na maioria das vezes vitoriosos, e que este fato consagra o grande mérito de sua técnica" (Mattrice Pefferkorn, "Les écoles de football", Genebra-Zurique, Kister-Schmidt, citado em A. Wahl, 1990). É curioso que o livro do historiador francês Alfred Wahl sobre a história do futebol cite, na sua parte final de "testemunhos e documentos", o trecho da versão em francês do artigo aqui reproduzido (Leite Lopes, J. S., avec Maresca, S., 1989) no qual é descrito o drible de Garrincha e é citada a crônica de A. Nogueira (p. 27), quase em seguida à citação de Pefferkorn, sem preocupar-se em comentar criticamente o racismo implícito nesta última citação (crítica no entanto disponível neste artigo).

 

17 - Ver E. von der Weid e A. M. Rodrigues Bastos (1986). Durante minhas pesquisas no Nordeste, pude observar, por exemplo, que desde 1940 as indústrias açucareiras de Pernambuco mantêm um campeonato de futebol entre elas. Ver J. S. Leite Lopes (1976, pp. 179-180). A Companhia de Tecidos Paulista (ainda em Pernambuco), a maior fábrica de tecidos do Brasil durante os anos 30-40, empregando na época entre 10 mil e 15 mil trabalhadores, tinha vários times de futebol diferentes desde os anos 20, tendo construído em 1930 um pequeno estádio para o seu campeonato interno. Ver J. S. Leite Lopes (1988, pp. 186-187). Informações adicionais sobre o Sport Clube Pau Grande e outros times da região de Petrópolis, onde existiam várias fábricas têxteis e onde também jogou Garrincha, estão no ricamente ilustrado número 1.072 de Placar, de junho de 1992, dedicado ao ex-jogador.

 

18 - Sobre a história social do futebol no Brasil, ver M. Filho, O negro no futebol brasileiro. Esse livro foi escrito em 1947, com prefácio de Gilberto Freyre, e completado em 1964 para relatar as mudanças ocorridas em função das Copas do Mundo de 1950 a 1962. Ver igualmente J. Lever (1953) e J. Rufino dos Santos (1951).

 

19 - Uma parte importante das cera de 300 fábricas com que contava a indústria têxtil brasileira nos anos 40 comportava vilas operárias (como aliás muitos outros setores industriais), muitas das quais isoladas em meio rural ou em subúrbios distantes. Só em Magé, três outras fábricas de tecidos coexistiam com a da América Fabril, que empregava então 1.200 operários. Ver Comissão Executiva Têxtil (1946). A respeito da freqüência com que grandes jogadores franceses são simultâneamente de famílias imigrantes e procedentes de vilas operárias de grandes fábricas, ver Heaud, S. & hloiriel, G. (1990, p. 55), os quais se apóiam em Leite Lopes, J. S. e Maresca, S. (1959).

 

20 - Ver P. Willis (1975), J. S. Leite Lopes (1955, cap. 2) e Rosilene Alvim & 1. S. Leite Lopes (1990).

 

21 - Esse poder da administração fabril de manipular as certidões de nascimento com a ajuda dos tabeliães locais não é rara: em outras firmas têxteis, a confecção das certidões de nascimento no momento da entrada no trabalho permitia efetuar falsificações de idade para admitir meninos menores de 14 anos, violando a lei com a complacência de seus pais. Ver M. R. Barbosa Alvim (1955, cap. 5).

 

22 - Notemos que o presidente do Pau Grande Football Club era o seu chefe de seção na fábrica.

 

23 - "Garrincha" é um termo do Nordeste, região de origem de muitas famílias operárias de Pau Grande, inclusive a do jogador, designando um pássaro conhecido por outro nome na região rural do Rio. Sua estranheza afastou inicialmente os jornalistas esportivos que, em 1953, tentaram mudar o apelido do iniciante para "Gualicho", nome de um cavalo que acabara de ganhar o Grande Prêmio do Brasil. Mas, ao contrário de seu nome, que fora trocado pela fábrica em sua certidão de nascimento, seu apelido sobreviveu às variações tão ao gosto da imprensa esportiva.

 

24 - Esses trabalhos suplementares ao trabalho assalariado são tratados como paradoxais atividades "independentes" ou como "ocupações acessórias" dos trabalhadores submetidos às fábricas com vila operária em Leite Lopes, J. S. & Machado da Silva, L. A. (1979, pp. 16-17) e em Alvim, M. R. B. & Leite Lopes, J. S. (1991). F. Weber (1989) utilizou a categoria nativa "travail à côté" dos trabalhadores franceses para estudar essas atividades na França contemporânea.

 

25 - J. S. Leite Lopes (1988, caps. 3 e 11).

 

26 - Por esta ótica, o filme Garrincha. Alegria do Povo começa com cenas de crianças e jovens de classes populares disputando peladas na praia de Copacabana, na rua, em terrenos baldios, corno se Garrincha encarnasse ao extremo essa paixão popular inata pela prática do futebol, não importa como. Um curto trecho do livro, aliás bastante interessante, de Janet Lever (1983, pp. 136-137), acentua por seu lado esta inclinação populista ao reduzir o ponto de partida da carreira de Garrincha e seu término ao que ela chama de "the slum", esta visão genérica do bairro pobre

27 - Ver Mario Filho (1964, p. 390).28 - Ver P. Bourdieu (1977)